segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Dawkins fala à Playboy sobre seu combate ao dogmatismo religioso

 

Richard Dawkins
"Não há conexão lógica entre ateísmo e o acontecimento de coisas ruins,
nem de coisas boas, aliás. O ateísmo é apenas uma crença filosófica sobre
a falta de uma inteligência criativa no mundo. Qualquer um que pense que
você precise de uma religião para ser bom está sendo bom por motivo
errado. Eu prefiro ser bom por razões morais"
por Chip Rowe, da Playboy
tradução de Israel Vieira Pereira

Richard Dawkins [foto], o santo patrono dos descrentes, causou furor no início do ano durante um debate com o Arcebispo da Cantuária, que apontou que seu oponente era alguém normalmente descrito como o ateu mais famoso do mundo. “Não por mim”, respondeu Dawkins antes de prover sua costumeira explicação – um ser supremo é possível apesar de bastante improvável –, o que levou um jornal londrino a proclamar que o cético mais notório do planeta estava se rendendo. Longe disso. Dawkins, com 71 anos de idade, continua sendo um irreprimível e afiado crítico do dogmatismo religioso. Como qualquer cientista que desafia a Bíblia e sua versão poética da criação, ele passa boa parte do tempo defendendo a teoria darwiniana de que toda vida, incluindo a humana, evoluiu através dos anos a partir da seleção natural, algo muito diferente do que simplesmente ser moldado a uma dezena de milhares de anos atrás por uma mão inteligente, apesar de invisível.

Dawkins, que se aposentou na Universidade Oxford em 2008, após 13 anos como professor de compreensão pública da ciência (significando que ele dava aulas e escrevia livros), caiu nas graças do público em 1976, quando tinha 35 anos, com a publicação de “O Gene Egoísta”. O livro, que vendeu mais de um milhão de cópias, persuade o leitor de que a evolução acontece em nível genético; indivíduos morrem, mas os genes mais adequados sobrevivem. Desde então, Dawkins escreveu mais 10 best-sellers, incluindo os recentes “A Magia da Realidade: Como Nós Sabemos O que É Verdadeiro”. Após o onze de Setembro ele se tornou ainda mais sincero acerca de seu ceticismo, culminando em “Deus, um Delírio”, que dá sustentação para seus contínuos debates com religiosos. Publicado em 2006, o livro se tornou o mais popular de Dawkins, disponível em 31 línguas com 2 milhões de cópias vendidas. No mesmo ano ele fundou a Richard Dawkins Foundation for Reason and Science “para apoiar a educação científica, pensamento crítico e a compreensão evidenciada de um mundo natural, buscando superar o fundamentalismo religioso, a superstição, a intolerância e o sofrimento”. Seus livros o fizeram um congressista bastante popular e um campeão do pensamento crítico. Em março, ele palestrou para 20.000 pessoas no Reason Rally na Praça Nacional em Washington, D.C; na semana seguinte ele esteve no Forte Bragg, na Carolina do Norte, encorajando o primeiro encontro de soldados ateístas e agnósticos jamais permitido antes numa base militar americana.

Dawkins vive em Oxford com sua terceira esposa, Lalla Ward, conhecida pelo papel de Romana em Doctor Who. Mas ele raramente fica em casa por muito tempo, e o editor colaborador Chip Rowe teve de viajar por três cidades para completar esta conversa. Ele afirma: “Dawkins é um orador cuidadoso, de pavio curto diante bobagens (que nos cercam, especialmente entre os jornalistas ocasionais ou crentes), mas ele muda de postura e seus olhos brilham quando lhe pergunto sobre princípios evolutivos. Nos encontramos pela primeira vez em Las Vegas numa convenção para céticos. Conversamos novamente quando ele visitou Nova Iorque para uma palestra na Cooper Union e em Washington, quando ele palestrou na universidade de Howard; conversou com o diretor de sua fundação; agradeceu aos voluntários; e visitou a impressionante exibição da origem humana no Museu Nacional de História Natural. Durante o passeio com o curador da exibição, Dawkins parecia incomodado toda vez que era compelido a conversar, encarando furtivamente um glóbulo ocular fossilizado em cada direção, incluindo os dispostos numa parede de caveiras progressivamente modernas. Em certo ponto, duas moças se aproximaram. “Esse é o Richard Dawkins!”, comentou uma delas para a amiga, arregalando os olhos. Imagino que tenha sido algo como se encontrar com o Bono no Rock and Roll Hall of Fame.

"Se existisse um deus, eu perguntaria:
'Senhor, por que você foi para
tão longe para se esconder?'"

Playboy: O que significa esse A em seu colar?

Dawkins: Significa “ateísta”.

Como uma letra escarlate?

A função não é refletir isso. É parte de uma das campanhas da minha fundação. Isto significa que as pessoas devem demonstrar no que acreditam e dar bons motivos para tal. É um pouco análogo aos gays saindo do armário.

Sendo que ateístas podem se casar uns com os outros.

Sim, verdade.

Há alguma palavra que descreva melhor o descrente do que ateu? Darwin preferia o termo agnóstico. Alguns sugerem humanista, naturalista, descrente...

Darwin escolheu agnóstico por razões táticas. Ele disse que o homem comum não estava preparado para o ateísmo. Há uma bela história que a comediante Julia Sweeney conta sobre sua própria jornada de devota ao catolicismo para o ateísmo. Quando ela finalmente decidiu que era ateia, mencionaram tal fato num jornal. Sua mãe lhe passou um telefonema histérico e disse algo como “Eu não me importo se você não acreditar em Deus, mas ateia?” (Risos) O termo “iluminado” foi sugerido por um casal da Califórnia. Eu acho que é um ótimo termo, apesar de a maioria dos meus amigos ateus acharem que o isso sugere que religiosos não sejam tão brilhantes. Eu digo pra eles: “E qual o problema nisso?” (Risos)

Você se descreve como um agnóstico “fada do dente”. O que isso significa?

Um amigo meu prefere usar esse termo do que dizer ser ateu, querendo demonstrar que não se pode comprovar a não-existência de Deus, apesar de ele ser algo como a “fada do dente”.

Então você não nega completamente a possibilidade de um ser supremo. Críticos veem isso como uma brecha.

Você pode pensar o mesmo se achar que há, também, uma brecha para comprovar a existência da fada do dente.

Parece-me um argumento de Bertrand Russell, que disse que enquanto podia afirmar que um bule orbitava pelo sol, entre a Terra e Marte, ele jamais esperaria que alguém acreditasse nele só por não poderem provar tal fato.

É a mesma ideia. É um pouco injusto dizer que é como a fada do dente. Eu acho que a ideia de um deus em particular, como Zeus ou Jeová, é tão improvável quanto a da fada, mas a probabilidade da existência de alguma inteligência criativa não é tão ridícula.

Então você não partilha da filosofia de Pascal. Ele era um filósofo do século 17 que dizia ser mais interessante acreditar em Deus, pois se não acreditar e estiver errado...

O preço da falha é bem alto. Mas e se você escolhesse o deus errado para louvar? E se você chegasse lá e em vez de Jeová encontrasse Baal? (Risos) E mesmo se escolhesse o deus certo, por que ele tem essa obsessão por adoração? E mais, qualquer deus minimamente decente perceberá qualquer traço de fingimento. As chances de existir algo assim são baixas, mas não importa, pois as recompensas são bem altas. Ao crer, você também pode estar desperdiçando sua vida. Você vai para a igreja todo domingo, paga promessa, se veste mal. Você tem uma vida horrorosa, e quando morre fica por isso aí.

Suponhamos que um deus exista e que você tenha a chance de lhe fazer uma pergunta. Qual seria?

Eu perguntaria: “Senhor, por que você foi para tão longe para se esconder?”.

Você tem amigos fervorosamente religiosos?

Não. Não que eu os evite; é que os círculos em que me encaixo são compostos por gente educada, inteligente, e não há pessoas religiosas entre tais grupos que eu conheça. Tenho amizade com alguns bispos e vicários que acreditam em algo e gostam de música e vidraçarias.

Albert Einstein e Stephen Hawking referenciam Deus em seus escritos. Eles usam tal palavra no sentido de um criador inteligente?

Certamente que não. Eles usam a palavra deus num sentido poético, metafórico. Einstein particularmente amava usar a palavra para conciliar a ideia de mistério, o que acho que cientistas decentes fazem. Mas hoje em dia nós aprendemos que é melhor usar outras palavras para não haver mal-entendidos, como foi no caso de Einstein. E o pobre coitado foi bem claro. “Eu não acredito em um deus pessoal”, repetiu ele várias e várias vezes. De algum modo, ele causou a própria confusão. Hawking a usa de um modo similar em “Uma Breve História do Tempo”. Na famosa última frase de seu trabalho ele diz que se entendêssemos o universo, “então saberíamos como funciona a mente de Deus”. Mais uma vez, ele está usando o deus Einsteniano, não no sentido religioso. Então, em “O Grande Projeto”, quando Hawking diz que o universo poderia ter se originado do nada, ele não está dando as costas para Deus; suas crenças ainda são as mesmas.

Você se diverte bastante desconstruindo a ideia de um criador inteligente. Você afirma que Deus fez o leopardo rápido suficiente para pegar uma gazela e a gazela rápida o suficiente para fugir do leopardo...

Sim. Deus é sádico?

...além do péssimo projeto de nos fazer comer e respirar através do mesmo mecanismo, tornando fácil engasgar e morrer.

Ou o nervo laríngeo, que passa por uma artéria no peito e então retorna à laringe.

Não é muito eficiente.

Nem numa girafa o seria.

Você afirma que cristãos veneram um “Deus criado”. Alguns respondem que Deus não foi criado; ele é eterno.

Poderíamos dizer o mesmo sobre o universo. Poderíamos dizer que os elefantes suportam o mundo em suas costas. E sempre houve elefantes. Respondo isso.

Os ataques do Onze de Setembro pareceram fazer você ainda mais militante no que tange seu ateísmo, como se a sua paciência houvesse finalmente estourado.

Teve um pouco disso. Muitas pessoas no mundo sentiram que deviam se erguer contra a ameaça e fazerem parte da luta. Qualquer sugestão de anti-americanismo em minha mente desapareceu. Ich bin ein Amerikaner (Nota do Tradutor: “Eu sou um americano”, em alemão). Então, George W. Bush destruiu isso. Foi um momento anti-islâmico e também antirreligioso para mim, pois eu estava nauseado quando a resposta de “Allahu Akbar” foi “Deus é conosco” ou qualquer outro ditado cristão – soou como se os líderes católicos americanos se unissem para apoiar a força que foi a origem da crise.

Você culpa o conceito de vida após a morte pelo Onze de Setembro?.

Sim. Normalmente, quando um avião é sequestrado, assume-se que os sequestradores querem tirar umas férias. O jogo muda se os sequestradores esperam que tais férias cheguem após a morte, pois é assim que conseguirão o melhor do paraíso.

Você fala da parte das 72 virgens em que o Corão afirma que esperam os mártires.

Sim. Jovens feios demais para conseguir uma mulher no mundo real buscam as que estão no paraíso. Mas o que quero dizer é que essas pessoas realmente acreditam no que elas dizem acreditar, algo que nem sempre acontece com o cristão. Nenhum cristão se anima ante a morte.

O que vai acontecer quando você morrer?

Bem, devo ser enterrado ou cremado.

Engraçadinho. Mas sem a parte da vida após a morte, como você se conforta na hora do desespero?

Com amor e compaixão humanos. Mas quando reflito mais, em momentos em que me concentro – conforto não é bem a palavra certa, mas eu consigo forças quando reflito no privilégio que é estar vivo e no privilégio que é ter um cérebro capaz de entender, limitadamente, o motivo da minha existência, a beleza deste mundo e a beleza do processo evolutivo. A magnificência do universo e a sensação de fragilidade que o espaço e este tempo profundamente geológico dão nos atordoa, mas de um jeito estranhamente reconfortante. É bom saber que você é parte de um cenário tão grande.

Você se preocupa com uma futura tentativa dos seus oponentes de falsificarem uma conversão à beira da morte, como os criacionistas tentaram com Darwin?

Algo um pouco mais preocupante é o efeito Antony Flew. Flew foi um filósofo ateu britânico que se converteu quando idoso. Ele ficou gagá. Daí é inevitável.

Então, se você se converter é por ter enlouquecido?

Sim. Depois que meu amigo Cristopher Hitchens foi diagnosticado com câncer, perguntaram-lhe se haveria uma conversão. Ele disse que se houvesse não lhe seria verdadeiro. O que é bastante assustador é quando religiosos costumam explorar isso, como fizeram no caso de Flew, que numa idade avançada foi persuadido a colocar seu nome num livro dizendo que se convertera a alguma forma de crença. Ele não apenas não escreveu no livro como também não o leu. (Risos).

Sua convocação para o militantismo ateu é um dos motivos pelo qual você aparece como um personagem em South Park. Os criadores do desenho, Trey Parker e Matt Stone, foram acusados de serem ateus, então pensaram quem seria o maior militante ateu possível.

É o único episódio de South Park que já vi. Houve a tentativa de fazer algo satirizando a ideia de um futuro utópico, onde diferentes seitas ateístas lutam umas com as outras. Mas as minhas funções durante o episódio eram ridículas na maior parte do tempo, como a sodomização de um travesti careca...

Transexual, na verdade.

Transexual, que seja. Isso não é sátira por que não tem nada a ver com aquilo que sou. E a parte escatológica, onde tinha alguém atirando cocô, que acertava minha nuca – isso nem foi engraçado. Eu não entendo por que eles não puderam ir direto pra parte da luta entre grupos de ateus, algo que possui um pouco de verdadeiro. Isso me lembra um pouco a Frente Popular da Judeia e a Frente dos Povos da Judeia, no “A Vida de Brian” do Monty Python.

O presidente Obama mencionou os “descrentes” no seu discurso inaugural, causando espanto. Mas quando você pensa em crenças religiosas, um dos maiores grupos nos Estados Unidos é o de ateístas e agnósticos. Por que vocês são ignorados durante discussões políticas?

Eis uma boa afirmação. Claro, ela depende de como você faz as divisões. Cristãos são, de longe, o maior grupo. Se você dividir os cristãos em suas denominações, agnósticos e ateístas são o terceiro maior grupo, atrás dos católicos e batistas. Isso é interessante ao analisarmos pelo lado da falta de influência dos descrentes. Se contarmos o número de judeus, certamente observadores, obteremos um grupo ainda menor que o dos descrentes. Ainda assim, judeus possuem tremenda influência. Não crítico isso – palmas para eles. Mas poderíamos fazer o mesmo.

Você não espera paz entre Israel e a Palestina.

Não há muita esperança quando os protagonistas mais influentes fundamentam sua hostilidade em livros de dois mil anos de idade dos quais eles acreditam que lhes dá direito a terras.

O que você pensa de Jesus?

As evidências de sua existência são surpreendentemente precárias. Os primeiros livros do Novo Testamento foram as Epístolas, e não os Evangelhos. É quase como se São Paulo e os outros que escreveram as Epístolas não estivessem interessados na existência de Jesus. Mesmo se ele for ficcional, quem escreveu sua história estava muito à frente do tempo em relação à filosofia moral.

Você leu a Bíblia?

Eu não li tudo, mas meu conhecimento bíblico é bem maior do que o da maioria dos fundamentalistas cristãos.

Qual seu versículo predileto?

Meu livro favorito é o do Eclesiastes. É uma bela poesia enquanto escrita no Inglês do século 17, e me disseram que fica melhor ainda em hebreu. “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade!”. A Canção das Canções é formidável, e é ainda mais engraçado em hebreu, algo como uma música para bêbados.

Você comentou que se Jesus existiu e caminhou para a morte como a Bíblia descreve, então tivemos um ato ‘puramente insano’, como descrito por você.

Não há evidência de que o próprio Jesus tenha sido puramente insano, mas a doutrina inventada posterior à morte dele por nossos pecados certamente o é. É puramente perturbador pensar que o criador do universo – capaz de inventar as leis da física e o processo evolutivo –, este possuidor de intelecto sobrenatural, não conseguiu pensar em um meio melhor de perdoar nossos pecados do que se torturar até a morte. E que terrível lição dizer que nós nascemos no pecado por causa do pecado original de Adão, um homem que até a Igreja Católica afirma não existir.

Escutamos constantemente que a América é uma nação católica e que seus pais fundadores foram todos cristãos.

Eles eram teístas. Não acreditavam em um deus particular, ou um que interferia em problemas humanos. E eles estavam cientes de que não queriam os Estados Unidos como uma nação cristã.

"Hitler não era ateu, ele era
católico romano. Mas eu não
ligo para o que ele era"

Mas você deve escutar bastante que se ateus possuíssem o controle acabariam sendo como Hitler e Stálin.

Hitler não era ateu, ele era católico romano. Mas eu não ligo para o que ele era. Não há conexão lógica entre ateísmo e o acontecimento de coisas ruins, nem de coisas boas, aliás. O ateísmo é apenas uma crença filosófica sobre a falta de uma inteligência criativa no mundo. Qualquer um que pense que você precisa de uma religião para ser bom está sendo bom por um motivo errado. Eu prefiro ser bom por razões morais. A moralidade surgiu antes da religião, e a moral muda independentemente da religiosidade. Até pessoas que confiam na Bíblia usam critérios morais não-bíblicos. Se seus critérios são escriturais, então você não tem motivo para escolher o versículo que diz para virar a outra face e não o que diz para apedrejar pessoas até a morte. Então você encontra sua moral sem a necessidade da Bíblia.

Você diz que a ciência está perdendo a guerra contra a religião.

Eu disse que estávamos perdendo? Eu devia estar num péssimo dia.

Surpreendia-lhe que a ciência ainda estava sendo desafiada.

Eu fico surpreso, mas eu não sei se estamos perdendo a batalha. Se você observar atentamente, houve evolução através dos séculos. Pessoas religiosas gostam de dizer que Isaac Newton era religioso. Oras, mas é claro que era – ele viveu antes de Darwin. É difícil ser ateu antes de Darwin.

Você teria sido o cara incapaz de acreditar em Zeus.

Eu me questionaria sobre os detalhes de Zeus atirando relâmpagos, mas eu provavelmente acreditaria em um ser sobrenatural. Quando se olha ao redor neste mundo vivo e se vê a complexidade de uma célula e a elegância de uma árvore – “Creio que jamais verei/ Um poema tão amável quanto uma árvore/ Poemas são feitos por tolos como eu/ mas para criar a árvore, somente Deus” – eu ficaria comovido por isso. Darwin mudou tudo. Ele cedeu uma simples, explicável, útil história sobre como você pode entender não só a complexidade da árvore como também a do ser humano através da funcionalidade física bastante especial que é o processo de evolução por seleção natural. Ah, se Newton vivesse o suficiente para ver isso.

O biólogo evolucionário Stephen Jay Gould via ciência como...

Non-overlapping magisteria (Magistérios não-interferentes), ou NOMA.

...completamente separáveis.

Isso é política pura. Gould estava tentando vencer batalhas no debate entre criação-evolução dizendo às pessoas religiosas “Você não deve se preocupar. A evolução é amigável aos religiosos”. E o único modo que pôde pensar em tranquilizar os religiosos foi dizer que as duas áreas se ocupam de temas diferentes. Mas ele generosamente cedeu os domínios da moral e das questões fundamentais à religião, o que é a última coisa que você deve fazer. Hoje, a ciência não – talvez nunca possa – responder a todas as questões sobre a existência e as origens das leis fundamentais da natureza. Mas o quê faz você pensar que a religião pode? Se a ciência não pode lhe responder, nada poderá.

Alguns cientistas dizem que você deveria parar de falar sobre o ateísmo porque isso atribula as águas no debate sobre a evolução.

Se você está tentando vencer a batalha tática nas escolas americanas, então é melhor mentir e dizer que a evolução é amiga da religião. Não desejo condenar pessoas que mentem por motivos táticos, mas eu não quero fazer isso. Para mim, isso é só mais uma briguinha dentro da grande guerra contra a irracionalidade.

Você diz que se a ciência e a religião são realmente inconciliáveis, então os católicos deveriam parar de acreditar em milagres.

Certamente. O milagre é uma péssima intervenção no jogo da ciência. A resposta dada por alguém ajoelhado e rezando sobre o motivo de acreditarem em deus sempre envolverá milagres, incluindo o da criação. Se você não permite isso à religião, então você acabou de destruir o motivo para todos serem religiosos.

Você se sente desencorajado pelos contínuos ataques contra a razão?

Não. Eu acesso muito a internet e leio o que os jovens andam escrevendo. Vejo um vertiginoso crescimento do bom-senso, da racionalidade, da irreverência. A América está dividida em duas metades. Há os idiotas descerebrados de Sarah Palin de um lado e um grande número de pessoas intelectuais, educadas e inteligentes do outro. Eu acho difícil acreditar que espécimes da Idade da Pedra acabarão vencendo no final. Uma horrível quantidade de gente que se diz religiosa simplesmente não conhece alternativas. Analisando suas crenças, descobre-se que são praticamente as mesmas –todos temos uma sensação de admiração e respeito perante a grandiosidade do universo.

Você é dos que pensam que a evolução da crença religiosa é um “produto acidental”.

Quando algo é disseminado entre uma espécie, você imagina que isso tenha algum valor para a sobrevivência. Não há valor de sobrevivência na religião em si – apesar de talvez haver – mas há o tipo de valor que se refere a predisposições psicológicas como obediência e autoridade. Esses valores são fortemente essenciais para crianças. Visto que elas são frágeis e não conhecem o mundo, confiam na sabedoria paterna. Mas não possuem meios de distinguir sabedoria boa para a sobrevivência da sabedoria puramente estúpida.

Seus pais lhe criaram na Igreja Anglicana.

Eu não desejaria o mal a meus pais ao dizer que me criaram religiosamente. Fui enviado às melhores escolas, e a maioria delas, na época, eram anglicanas. Eu tinha orações diárias e leituras da Bíblia. Uma me aceitou aos treze anos.

Quando você teve seu primeiro contato com a Origem das Espécies?

Dois anos depois.

E fez sua cabeça.

Sim. Uma ideia simplicíssima que explica as complexidades da cauda do pavão, do saltitar do antílope, da aceleração da pantera, do voar do beija-flor, do pensar do humano. São maquinários extremamente complicados, e ainda assim entendemos o porquê deles existirem.

Seus pais eram naturalistas que, como você diz, podiam identificar qualquer tipo de planta na Grã-Bretanha.

Meu pai lia sobre botânica em Oxford. Eu li sobre zoologia lá. Eu não era naturalista como ele, mas amava caminhar pelas florestas com alguém que as conhecia.

Ele te influenciou de alguma forma?

Curiosidade, curiosidade científica.

E a sua mãe?

Ela não tinha formação em ciências, mas tinha um conhecimento muito bom sobre plantas também. Era uma das coisas que os dois adoravam juntos, eu acho. Ela me educou, e aprendi muito com ela.

Você nasceu em Nairóbi. Por que seus pais estavam lá?

Por causa dos conhecimentos que possuíam sobre botânica, meu pai se juntou ao departamento agrário do Serviço Colonial Civil e foi enviado ao Leste da África, na região onde ficava a Niassalândia e hoje é Malawi. Então, ele foi convocado para a Artilharia Africana do Rei, um regimento britânico localizado em Nairóbi. Daí, se moveu ao norte do Quênia e minha mãe o seguiu. Ela acabou passando por algumas dificuldades. Visto que ela não estava legalmente no Quênia, teve alguns problemas para sair de lá. (Risos).

O que lembra daquele tempo?

Lembro muito da Niassalândia. Lembro dos aromas e paisagens e cores. Era uma existência privilegiada, cheia de servos. Era como se houvéssemos voltado cem anos no tempo: vivíamos numa estranha sociedade patriarcal.

Ao completar oito anos, você se mudou com os pais para a Inglaterra.

Meu pai herdou os bens dos Dawkins. Bens que estiveram na família desde 1723, nas mãos de um primo muito distante – tão distante que nunca ouvíramos falar dele. Esse primo desejava que uma fazenda sua continuasse nas mãos de um Dawkins, mas não havia filhos homens. Foi brilhante da parte dele escolher o meu pai por ele ter formação em agricultura, embora tropical, além de possuir o tipo de conhecimento empresarial capaz de transformar a herança em uma fazenda para trabalho.

O que ele cultivava?

Ele tinha gado Jersey, que, como sabemos, dá muito creme. Ele fornecia creme para todos os hotéis locais e colégios de Oxford. Também criava porcos. A área, hoje, não é tão grande. Um Dawkins excêntrico do século 19 vendeu grande parte das terras para pagar por processos, então parte das heranças da família desapareceu.

Você escreveu seu primeiro livro durante um apagão décadas depois de se mudar para a Inglaterra.

Em 1972 havia grande agitação industrial na Grã-Bretanha, e por dias inteiros não tínhamos energia. Eu não podia continuar minha pesquisa, então eu decidi começar a escrever “O Gene Egoísta”.

"Existe uma resposta educada
a quem pergunta por que
você não vai à igreja?"

Você é um grande fã da ficção científica. O que te atrai nela?

Eu prefiro o tipo de ficção científica que toma algum aspecto da ciência e o modifica. Conheço um romance adorável de Daniel Galouye chamado “O Universo Escuro”, que é sobre um grupo de pessoas que vivem em total escuridão e não conhecem a luz. Então a luz se torna um mito. Eles usam frases como “Luz toda poderosa” e fazem cerimônias quando sentem uma lâmpada sagrada. Galouye mudou apenas uma coisa – ele retirou a luz – e procurou por todas as consequências disso.

Algo oposto à criação de um mundo de fantasia.

Princesas cavalgando unicórnios não é ficção científica.

O assessor da Playboy recebeu esta questão de um leitor: “Sinto-me inconformado quando uma pessoa que acabo de conhecer me pergunta se vou a igreja, pois não vou. Existe algum modo educado para responder?”.

Eu diria, “Não, eu não vou à igreja. Você vai? Se sim, por quê?”.

Isto é o que você disse numa carta a sua filha quando ela tinha dez anos.

O que eu fiz, e sugeriria aos outros pais que imitassem, foi encorajar ela a pensar por si mesma. Para ilustrar melhor, eu falei isso na ocasião em que tive de falar sobre o Papai Noel: “Bem, vamos calcular quantas chaminés existem”. Quer dizer, seria divertido descobrir que ele teria de viajar mais rápido que a velocidade da luz para atender a todos.

E se a criança começar a chorar?

Oh, isso seria uma vergonha.

Ter um filho mudou suas visão de mundo de algum modo?

Creio que não, apesar de meu interesse pelas origens evolutivas de certos sentimentos subjetivos. Eu me tornei nitidamente mais nervoso acerca de coisas como alturas.

Você enxerga perigo em todo lugar.

Exatamente.

Você aconselhou a ela questionar “Quais as evidências?” no caso de alguém lhe apresentar qualquer argumento. Ela era popular entre os professores?

Não sei muito sobre ela, mas eu escutei histórias de terror sobre crianças que perguntavam coisas demais a professores de religião.

Todos os ateus que conhecemos na convenção de céticos em Las Vegas pareciam ter uma história sobre terem sido expulsos da catequese.

Sim, e isso é muito engraçado. O que um professor de catequese deveria dizer é “Vamos olhar as evidências”. Em vez disso, deixam as coisas de lado. E o motivo pelo qual eles não convencem é a falta de evidência.

Eles não convencem você também. Você pede que religiosos mudem a própria visão de mundo.

Eu quero que as pessoas mudem o modo que veem o mundo a ponto de exigirem evidências para acreditarem em algo. Não é bom acreditar em algo só por “todos acreditarem desde sempre”. Se você nascesse no Afeganistão ou na Índia, você acreditaria em qualquer outra coisa. Outro motivo gritante é que há diferença entre sentir que algo é verdadeiro e o pastor dizer que é verdadeiro.

Ken Miller, autor de “Encontrando o Deus de Darwin”, já criticou você dizendo que ateus e agnósticos são mais evangélicos do que pessoas religiosas. É isso que você sente dentro do ateísmo?

Você pode se apaixonar sobre a necessidade de se buscar evidências e ficar passionalmente irritado com pessoas que não o fazem. Isso não é algo evangélico; isso é raiva.

Apesar disso, você gosta do livro de Miller.

O livro pode ser a melhor refutação do criacionismo, apesar de fugir do tema quando tenta justificar o catolicismo. Um dos motivos pelos quais eu recomendo o livro não é por ele ser simplesmente bom, mas por ter sido escrito por um cristão. Infelizmente escrito por um católico, e muitas pessoas que citamos acham que católicos são piores que ateus. (Risos).

Em 2010, numa convenção em Londres, você protestou contra a visita do Papa Bento XVI ao país.

Esperávamos que 2.000 pessoas aparecessem, e 15.000 vieram.

Você pensa, assim como Cristopher Hitchens pensou, que o Papa deveria ser preso?

Hitchens me escreveu sugerindo que deveríamos tentar prendê-lo, mas desistimos da ideia de aparecer do nada e literalmente algemar um cidadão ou coisa parecida. Em vez disso, pedimos a um conhecido advogado de direitos humanos, Geoffrey Robertson, para falar sobre o caso jurídico contra o Papa por ele encobrir casos de pedofilia. Ele também analisou a imunidade do Papa contra processos por ele ser líder de um Estado, deixando em aberta a questão da noção do Vaticano como um legítimo Estado soberano. Também respondi ao Papa por sua truculência desnecessária durante seu pouso em Edimburgo. A primeira coisa que ele disse foi culpar o ateísmo por ter criado Hitler. Apesar de não culpar o Papa por ele ter sido um membro da Juventude Hitlerista, como foi o caso, eu me senti bastante injuriado. Se fosse ele, eu deixaria de mencionar Hitler.

Você se impressionou com algumas das placas vistas na convenção.

Duas das minhas favoritas foram “Mantenha seu rosário longe do meu ovário” e “tire as mãos dos meus ovos, Bento”. (Risos).

O papa pediu perdão pelos abusos sexuais praticados contra crianças na Igreja Católica. Isso é o suficiente?

Oh, grande coisa! Ele não entregou nenhum registro relevante à polícia. Ele pediu perdão relutantemente após ser pressionado a fazê-lo.

Você discursou em Dublin e disse, na ocasião, que o abuso sexual é menos danoso para uma criança do que o dano psicológico de torná-la católica. Quais foram as reações?

Fui ovacionado. Quero deixar claro de que não falava sobre qualquer espécie de violência sexual que descobrimos ser mais constantes que imaginávamos. Eu falava de carícias leves, o que por si só já é bastante ruim, mas fazer uma criança acreditar nas chamas do inferno é ainda pior.

"Não descendemos dos chimpanzés,
bonobos ou gorilas. Eles evoluíram
no mesmo ritmo que nós"

Vamos falar sobre evolução, que muitas pessoas não compreendem direito, alegando, por exemplo, que acreditamos descender dos macacos.

Nós somos primatas. Nós descendemos dos mesmos animais extintos que seriam classificados como primatas. Nós não descendemos dos modernos chimpanzés, bonobos ou gorilas. Eles evoluíram no mesmo ritmo que nós.

Então, o que nos faz humanos?

Somos uma espécie única de primata. Temos uma língua. Outros animais têm sistemas de comunicação que não chegam nem perto do nosso. Eles não têm a habilidade de comunicar condições complicadas, suposições e ações que não sejam no presente. Tudo isso é uma manifestação única de nosso cérebro símio desenvolvido, cujas evidências sugerem ter surgido após um número de mutações bastante limitado.

Peter Singer, que ajudou a fundar o GAP, sugere que os primatas merecem direitos básicos. Concorda?

Por que só os primatas? Por que não os porcos?

Mas os primatas são nossos primos.

E daí? Todos somos primos. E se as lulas, que são primos muito mais distantes, evoluíssem numa espécie inteligente equivalente à nossa?

Sim, mas eles não evoluíram.

Você pode basear sua moral através do parentesco se quiser, mas por que deveria? Eu prefiro pensar como Jeremy Bentham e basear minha moral na questão “Eles podem sofrer?”. Singer é um grande entusiasta da palavra especismo. Nós temos um ancestral comum nos chimpanzés que viveram a 6 milhões de anos atrás. Se você imaginar segurando a mão de sua mãe, que segura a mão de sua avó, que segura a mão de sua bisavó e assim por diante até o ancestral comum, a linha se estenderia por milhares de quilômetros. Com a outra mão, o ancestral comum segura a mão de sua filha dela, que segura a mão da sua mãe e assim por diante até chegar aos chimpanzés modernos. Se pensarmos no passado, todas as relações mãe-filha incluiriam membros da mesma espécie.

Então não houve primeiro humano.

Jamais. Mas suponha que uma espécie intermediária não houvesse se extinguido. Suponha que seus remanescentes tenham sido encontrados numa floresta africana. Para negar os direitos dos chimpanzés, você teria que criar cortes ao estilo Apartheid para decidir se tal indivíduo contaria como ser humano ou não. Afinal, isso é um contínuo. De uma maneira pratica, as raças intermediárias não sobreviveram, então é possível dar aos humanos direitos básicos e nada aos chimpanzés. Creio que este seja um argumento válido.

Você é contra o aborto?

Pessoas que alegam lutar contra o aborto em prol da vida na verdade lutam em prol da vida humana. Um embrião de quatro células ou um de sessenta e quatro, ou até um muito maior que isso não possui sistema nervoso. Você deve ter menos pena em matar uma criatura dessas do que matar uma minhoca, pois a minhoca tem um sistema nervoso e pode sofrer. Então ser contra o aborto de embriões humanos extremamente jovens é ridículo. Ser contra a morte de embriões mais velhos já não é tanto assim. Não há motivo para pensar que a capacidade deles de sofrer é maior do que a capacidade de sofrimento de um porco adulto ou de uma vaca.

O que veio primeiro – o cérebro desenvolvido ou o bipedismo?

O bipedismo veio primeiro.

E como sabemos disso?

Fósseis. Os fósseis o deixam bem claro. Três milhões de anos atrás, o Australopithecus afarensis era bípede, mas seus cérebros eram menores do que o de um chimpanzé. O melhor exemplo que temos é Lucy (um esqueleto parcialmente completo encontrado em 1974 na Etiópia). De algum modo, ela era um chimpanzé capaz de andar nas duas pernas.

Você gosta da Lucy?

Sim. (Sorrisos).

Você disse que a humanidade criará um livro genético dos mortos até 2050. Como isso seria útil?

Nosso corpo contém genes que sobreviveram através das gerações, então poderíamos, teoricamente, ler a história evolutiva de uma criatura qualquer. “Ah, sim, esse animal viveu no mar. E este é o tempo em que viveu nos desertos. Esse porquinho aqui mostra que deve ter vivido nas montanhas. E esse mostra que costumava escavar.”.

E isso poderia nos ajudar a ressuscitar um dinossauro? Você sugeriu cruzar um pássaro e um crocodilo, colocando o resultado disso dentro de um ovo de avestruz.

Seria algo mais sofisticado do que uma cruza. Teria de ser uma fusão.

Poderíamos recriar Lucy?

Nós já conhecemos o genoma humano e o genoma símio, então poderíamos tirar uma conclusão sofisticada sobre como o genoma do ancestral comum tenha sido. A partir disso poderíamos conseguir criar um animal próximo ao que seria o ancestral comum. Daí, você pode tirar a diferença entre o animal ancestral recriado e o humano moderno conseguindo, dessa forma, Lucy.

Você acusa os criacionistas de jogarem sujo.

Certamente o fazem.

É por esse motivo que você e outros biólogos evolucionistas não debatem com eles?

Em partes. O debate também dá a eles uma respeitabilidade desmerecida. Um colega meu gosta de responder a eles: “Isso engrandeceria muito seu currículo, mas não o meu”.

Qual argumento preferido dos criacionistas contra você?

Bobagens ignorantes. Eles dizem coisas como “Bem, se nós descendemos dos macacos, então por que ainda existem macacos?”. Não é tão difícil assim.

Falam muito que a evolução é “apenas uma teoria”. Estou certo?

A palavra “teoria” pode ter sentido de “hipótese”. Mas a palavra também é usada em um sentido mais sério, como “corpo de conhecimento”. É melhor usar a palavra “fato”. A evolução é um fato, no mesmo sentido que a terra gira em torno do Sol.

Há discordâncias quanto ao princípio básico da evolução.

A seleção natural é o princípio básico, mas há discordância sobre o que era a pressão seletiva. Por exemplo, sabemos que o cérebro humano cresceu. Foi por causa dos indivíduos mais perspicazes, melhores em achar comida ou evitar predadores? Ou foi por eles terem sido mais sexualmente atraentes? É possível que um cérebro maior seja semelhante à cauda do pavão. Darwin propôs uma segunda versão da seleção natural, chamada seleção sexual. Se a pavoa escolhe o pavão pelo brilho de suas penas, então esqueça a sobrevivência. Os com as maiores caudas sobrevivem menos, pois a cauda é um fardo. Ainda assim, se eles são mais atraentes para as fêmeas, então os genes que criam as grandes caudas podem morrer na próxima geração. É possível que o cérebro humano tenha crescido pela seleção sexual. A inteligência é sexy. Talvez os machos mais inteligentes tivessem o dom da lábia. Talvez conversassem muito bem, ótimos em lembrarem de sagas e mitos tribais, ou passos de dança.

Ou talvez ela gostasse de carne de antílope.

Algo nesse sentido. Se a pavoa escolhe o macho com a cauda maior, é por ela saber que ele não sobreviveria com uma cauda daquelas sem que algo lhe acontecesse. É a forma deles de mostrarem como são resistentes a intempéries. Há uma seleção dupla – fêmeas diagnosticam eximiamente, e os machos são ótimos de serem diagnosticados, mesmo que realmente doentes.

Qual o papel do acaso na evolução?

Mutação, a matéria-prima da seleção natural, é randômica no sentido de que não é sistematicamente direcionada à melhora. Mas a seleção natural é altamente não-randômica, pois é o sistema de escolhas de melhorias encontradas na gama de variações que a mutação apresenta. Quando um cometa atingiu a terra, todos os dinossauros se extinguiram com exceção dos pássaros. Alguns poucos mamíferos sobreviveram, e nós descendemos deles, talvez daqueles que estivessem em hibernação.

Você descreve a vida como uma “bomba reprodutiva”.

Se observarmos o universo, há mundos mortos atrás de mundos mortos. A física evolui e a química também, mas nada a mais acontece. Repentinamente, em um lugar qualquer, ocorre uma explosão nascida da reprodução. Por algum motivo, as leis da química fazem nascer uma molécula que se auto-reproduz. Talvez neste planeta esta seja a única vez que isso tenha acontecido. Mas o nascer de uma molécula através de algum acidente químico que se auto-reproduz traz consequências enormes.

Os criacionistas tentam te colocar numa saia justa, ao exemplo de uma equipe de filmes Australiana que lhe perguntou se “você poderia dar um exemplo de mutação genética ou um processo evolutivo que explique o aumento de informação no genoma?” e então, pelo seu silêncio, apontaram que você tinha ficado sem resposta.

A maneira pela qual acontecem esses aumentos é a duplicação genética. Você tem extensões de genoma que poderiam ser úteis, e aí uma cadeia é copiada e colada em algum outro lugar, onde está livre para evoluir num caminho diferente.

Por que você não respondeu?

Eu pensei, “vou ignorar esse pessoal?”. Esse é o tipo de pergunta que um criacionista faria, mas eles não tinham se apresentado como tal. O que eles fizeram foi associar a pergunta e a minha pausa para responder a uma suposta tentativa de evasão de minha parte. Foi uma atitude de mediocridade gritante.

A maioria das objeções contra a teoria da evolução se refere à complexidade. As pessoas não conseguem entender como um olho pode ter evoluído.

Não importa a complexidade do olho, isso não é tão complicado quanto um deus.

Criacionistas adoram citar que faltam fósseis de outras eras, como dos que precedem o período da explosão Cambriana, algo entre 530 milhões de anos atrás, quando houve um crescimento exponencial de formas de vida complexas. Poderia explicar?

Claro que há faltas; a fossilização é um evento raro. Mas se não possuíssemos um único fóssil, as evidências da evolução estariam absolutamente asseguradas pela anatomia comparativa, pela bioquímica comparativa e pela distribuição geográfica. Essas faltas de antes da explosão Cambriana são interessantes, pois elas são enormes. Mas, se refletirmos, há grandes grupos de animais não fossilizados. Por exemplo, hoje vimos no museu de história natural uma criatura quase microscópica chamada tardigrada. Eles não se fossilizam por serem macios. Presume-se que antes do período Cambriano, a maioria das criaturas tenham sido pequenas e macias.

E como sabemos que essas criaturas existiram se seus fósseis não existem?

Não é bem essa a pergunta, certo? Seus descendentes existiram no período Cambriano então, a não ser que realmente pensemos que eles foram criados em tal período, eles realmente existiram. Você pode dizer que isso não é evidência, eu digo que poderíamos dizer o mesmo de qualquer criatura macia que não possui fósseis. Como não sabemos que sua criação não ocorreu em 1800? Não faz sentido.

E que tal essa, outra favorita dos criacionistas: Se animais modernos como os macacos evoluíram de sapos, então por que não foram encontrados fósseis de uma criatura como um “macapo”?

O problema é pensar que animais modernos descenderam de outros animais modernos. Se levássemos isso a sério, então não deveria haver apenas fósseis de “macapos”, mas também de “crocopatos” e “polvacas”. Por qual razão acham que dá para pegar qualquer par de animais e procurar suas combinações? Imagine-se olhando para o topo de um galho de uma árvore. Os ancestrais estão enterrados no meio, no tronco da árvore. Não há “macapos” por que o ancestral comum do macaco e do sapo seria algum tipo de peixe ou salamandra totalmente diferente de um sapo ou de um macaco.

Criacionistas também adoram dizer que se uma das partes da cadeia evolutiva for removida e nada acontecer, então não há como haver evolução.

Uma boa analogia pode ser encontrada num arco, onde você vê pedras, pedras, pedras e elas acabam se encontrando no meio, erguidas, formando a estrutura. Tire uma das pedras e o arco cai. Você pode pensar que é difícil construir um arco até ter tudo corretamente no lugar, mas você não pensa no uso dos andaimes, retirados desde a finalização da construção. Isto responde tudo. Também podemos dizer que você não precisa de todas as partes do olho para ver. Você pode ter um olho cheio de imperfeições, mas ainda capaz de identificar luz e sombra. E isto ainda é útil se você puder distinguir as sombras de um predador. Logo, não é verdade quando dizem que meio olho é inútil. Meio olho é metade de um olho inteiro, e isso é melhor do que nada.


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Fonte: http://www.paulopes.com.br/2012/08/Entrevista-de-richard-dawkins-a-playboy.html

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