Atividade física e ácidos graxos insaturados como o ômega-3 revertem inflamação que desencadeia obesidade e diabetes
Todo mundo já sabia que fazer exercícios físicos com regularidade e evitar o consumo excessivo de carnes vermelhas gordurosas ajuda a prevenir a obesidade e o diabetes, mas as explicações sobre por que essas recomendações funcionam permaneciam superficiais. Agora finalmente começa a se entender por quê: a atividade física protege a região do cérebro que regula o apetite, justamente a que é atacada pelas gorduras saturadas, como as encontradas na picanha. De acordo com estudos recentes, alguns deles feitos no Brasil, o efeito benéfico do exercício é similar ao gerado pelo consumo de outro tipo de gordura, as insaturadas da família ômega-3, encontradas em óleos de peixe de clima frio. Emergem daí novas possibilidades de deter a obesidade e o diabetes, em especial o do tipo 2, quando o organismo produz insulina, mas não a utiliza adequadamente.
Uma parte desse novo conhecimento vem de uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) coordenada pelo médico endocrinologista Mário Saad. Há anos ele e sua equipe estudam as causas dos desequilíbrios orgânicos que levam à obesidade e ao diabetes. No ano passado, Lício Velloso identificou uma causa específica dessas doenças: o consumo excessivo de gorduras saturadas de cadeia longa pode gerar uma inflamação nos neurônios de uma região na base do cérebro, o hipotálamo, que controlam a fome (ver Pesquisa Fapesp nº 156, de fevereiro de 2009). A inflamação impede o correto funcionamento do hormônio insulina, que facilita a captação de glicose nas células. Os neurônios do hipotálamo perdem a capacidade de se ligar à insulina – fenômeno conhecido como resistência à insulina, comum em pessoas obesas ou diabéticas – e a fome predomina sobre a saciedade. Agora Eduardo Ropelle concluiu que praticar exercícios físicos, além de queimar calorias, como já se sabia, ajuda a reduzir a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a restabelecer a saciedade.
Ropelle transformou camundongos normais em obesos, dando-lhes uma dieta rica em gorduras saturadas. Em seguida pôs uma parte dos animais para nadar e correr em esteira, enquanto outros permaneciam em repouso. Os camundongos que se exercitavam produziram intensamente proteínas anti- -inflamatórias conhecidas como interleucinas (neste caso, de dois tipos, a IL-6 e a IL-10), como detalhado em um artigo publicado este mês na revista PLos Biology. Essas interleucinas reduziram a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a insulina voltou a funcionar normalmente. Os animais desse grupo começaram a comer menos e perderam peso.
“A atividade física restabeleceu o equilíbrio molecular e celular no hipotálamo”, concluiu Ropelle. Para conferir se essas duas proteínas tinham mesmo esse efeito, ele aplicou IL-6 e IL-10 no cérebro dos animais obesos que não fizeram exercícios – e também emagreceram. Camundongos geneticamente modificados, incapazes de produzir esses dois tipos de interleucinas, continuaram engordando, mesmo que nadassem e corressem. Esse trabalho levanta a possibilidade de controlar a obesidade e o diabetes intervindo em processos inflamatórios no sistema nervoso central, não necessariamente por meio das interleucinas, que podem reduzir as defesas do organismo contra microrganismos causadores de doenças.
Em busca das origens mais profundas da resistência à insulina, Velloso e Saad concluíram que as gorduras saturadas se ligam a proteínas da membrana celular conhecidas como TLR-4. Os receptores acionam enzimas que bloqueiam a ação da insulina, impedindo o aproveitamento da glicose (ver Pesquisa FAPESP nº140, de outubro de 2007). “Quando ativado”, diz Velloso, “o receptor celular TLR-4 aciona o processo inflamatório e o estresse celular que podem causar a morte de neurônios. A consequência pode ser um desequilíbrio no número de neurônios, se morrerem mais neurônios que acionam a vontade de comer do que neurônios que tiram a fome”. Por sorte, ele acrescenta, os ácidos graxos insaturados ômega-3 podem ter o efeito oposto dos saturados, bloqueando em vez de estimular a inflamação. Essa classificação dos ácidos graxos decorre do número de ligações químicas duplas entre seus átomos de carbono: os ácidos saturados não têm ligações duplas, enquanto os insaturados têm pelo menos uma. O tipo de ligação química determina as estruturas espaciais (os saturados são alongados e os insaturados curvos) e suas propriedades, como a capacidade de interagir com diferentes moléculas do organismo.
Velloso acredita que a propriedade anti-inflamatória dos ácidos graxos insaturados ômega-3 poderia ser mais aproveitada, por exemplo, para motivar mudanças na composição dos alimentos, com o reforço de gorduras benéficas, que nos últimos anos já ajudou a reduzir o risco de infarto e outros problemas cardíacos e poderia beneficiar também quem não lida bem com a glicose. No Brasil, 6 milhões de pessoas já sabem que são diabéticas e outras 6 milhões podem ainda não saber, por não terem sido diagnosticadas. Já o sobrepeso e a obesidade, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Saúde, divulgados em junho, atingem quase metade da população, tendo avançado de 43% para 47% de 2006 a 2009.
“Um ácido graxo saturado, o palmítico, aciona o receptor celular TLR-4 e os processos inflamatórios que levam à resistência à insulina, enquanto outro, um insaturado, o palmitoleico, tem efeito inverso e diminui a resistência à insulina”, observa Rui Curi, coordenador de um grupo de pesquisa nessa área no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (SP). Jarlei Fiamoncini, de sua equipe, conduziu um experimento que mostrou esse contraste claramente. Camundongos que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados da família ômega-3, o eicosapentaenoico (EPA) e o docosahexaenoico (DHA), encontrados em peixes de clima frio como salmão e bacalhau, apresentaram maior sensibilidade à insulina, normalizando a concentração de glicose no sangue. O excesso de glicose no sangue pode danificar nervos e vasos sanguíneos.
Nesse experimento, além de normalizar os níveis de glicose, a dieta à base de óleo de peixe diminuiu a produção de enzimas que formam gordura a partir de carboidratos (açúcares). Em consequência, os animais desse grupo ganharam menos peso que os do outro, alimentados com banha de porco, rica em ácidos graxos saturados. “A gordura saturada como a de banha de porco atrapalha a captação de glicose e pode induzir a resistência à insulina”, diz ele. Os animais do segundo grupo tiveram mais fome, comeram mais e engordaram muito.
Gorduras saturadas ou insaturadas podem ter efeitos opostos também sobre as células musculares. O excesso de dois tipos de ácido graxo saturado, o palmítico e o esteárico, prejudicaram o funcionamento de células musculares cultivadas em laboratório e dificultaram a ação da insulina, enquanto os ácidos oleico, linoleico, EPA e DHA, todos insaturados, não alteraram o funcionamento das células e deixaram a insulina agir normalmente, de acordo com os estudos de Sandro Massao Hirabara, professor da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 previnem a resistência à insulina induzida pelos saturados”, comenta, com base em estudos em andamento.
“Não é à toa que os japoneses e os esquimós, que consomem muito peixe rico em ácidos graxos insaturados ômega-3, comparativamente com outras populações, apresentam menos problemas cardíacos, diabetes e obesidade”, diz Curi. Pode ser bom, portanto, substituir alimentos ricos em ácidos graxos saturados (óleo de soja, manteiga, gordura animal) por insaturados (óleo de oliva, de linhaça ou de girassol). Quem já cumpriu esse estágio pode seguir adiante e trocar os alimentos ricos em ácidos graxos insaturados ômega-6 pelos ricos em ômega-3. Óleos como o de milho, girassol, açafrão e soja contêm principalmente ácido linoleico, do qual derivam os outros componentes da família do ômega-6, enquanto os de canola, linhaça, noz e plantas com folhas verde-escuras em geral são ricos em alfa-linolênico, o principal componente da família ômega-3. Nem todos os ômegas, mesmo sendo insaturados, têm o mesmo efeito sobre o organismo. Como o deus romano Jano, os ácidos graxos, mesmo os do mesmo tipo, têm duas faces, de efeitos opostos. “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 reduzem a inflamação que pode levar à resistência à insulina, enquanto os insaturados ômega-6 podem agir no sentido oposto”, diz Curi, recorrendo ao efeito Jano. Os ácidos graxos podem ajudar a contornar um dos problemas que acompanham o diabetes: a dificuldade de cicatrização, que faz com que mesmo pequenos ferimentos se tornem crônicos, concluiu Elaine Hatanaka, da Unicsul. Sua equipe, com colegas da USP, examinou a ação de três ácidos graxos – ácidos oleico, linoleico e linolênico – sobre ferimentos induzidos em ratos. Os três compostos aceleraram a cicatrização. Como efeito inicial, estimularam a migração de um tipo de células do sangue, os neutrófilos, para o ferimento. Por sua vez, os neutrófilos produziram mais proteínas chamadas citocinas, que, a seu modo, facilitando a comunicação entre as células, contribuíram para o ferimento fechar, como descrito em um artigo publicado na revista Cell Biochemistry and Function. O efeito desses ácidos graxos – outro sinal do efeito Jano? – não é uniforme. “Dependendo do tipo de célula, a ação dos ácidos graxos pode ser diferente”, diz Elaine. Além disso, em um segundo momento, ao longo do processo de cicatrização, os mesmos ácidos graxos agiram de modo inverso: fizeram com que os níveis de células e proteínas comunicadoras, momentaneamente elevados, voltassem ao normal. “Os ácidos graxos modularam a resposta inflamatória ao longo do processo de cicatrização, inicialmente ampliando a ação e a quantidade de neutrófilos e de citocinas [proteínas que facilitam a interação celular] e depois as reduzindo para os níveis normais”, comenta Elaine. Os estudos nesse campo explicam o efeito cicatrizante de óleo de plantas como a copaíba, com alto teor de ácidos oleico e linoleico, e o antigo hábito da medicina tradicional chinesa de tratar ferimentos com extrato de glândulas de grilos, ricas, agora se sabe, em ácido linoleico.
Um estudo feito em camundongos na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Curitiba reforçou a perspectiva de usar ácidos graxos – principalmente os insaturados – como um reforço contra o câncer. Luiz Claudio Fernandes e sua equipe verificaram que um tipo de tumor bastante agressivo, chamado tumor de Walker, cresceu bem menos nos animais que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados EPA e DHA do que nos animais que não ganharam nenhuma dose extra de lipídios. Segundo ele, nos animais do primeiro grupo a produção de um composto derivado dos ácidos graxos, a prostaglandina-3, que freia a multiplicação celular, intensificou-se, e o tumor cresceu menos. No outro grupo, outro composto, a prostaglandina-2, que favorece a multiplicação de células normais e tumorais, é que se intensificou. Fernandes notou também, nos camundongos tratados com lipídios ômega-3, uma menor caquexia, um dos efeitos do avanço do câncer, caracterizado pela perda de apetite e abatimento geral, em razão do consumo intenso de glicose pelos tumores.
Ele acredita que o organismo humano pode apresentar reações ao menos semelhantes. “Quando colocamos células de tumor humano de cólon, pulmão e próstata em um meio de cultura com ômega-3, a taxa de proliferação do tumor cai”, diz. “Os estudos em seres humanos ainda são poucos, mas, pelo que já vimos, os efeitos colaterais indesejados dos ácidos graxos são mínimos e se limitam a flatulência ou a desarranjos intestinais.” Na UFPR, o grupo de Anete Curte Ferraz verificou que o ômega-3 contribuiu para reduzir a depressão em pessoas com Parkinson ou depressão severa, de acordo com um estudo duplo-cego com 31 participantes publicado em 2008 na Journal of Affective Disorders. Em outro estudo, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da USP de Ribeirão Preto e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) concluíram que o ômega-3 pode proteger os neurônios do sistema nervoso central e reduzir a frequência das crises de epilepsia (ver Pesquisa Fapesp nº 169, de março de 2010). Na Finlândia, um teste com 33 mil mulheres indicou outra possível aplicação dos ácidos graxos insaturados ômega-3 e 6, complementados por vitamina D: reduzir os surtos psicóticos em pessoas com esquizofrenia.
Esses estudos reforçam a versatilidade dos ácidos graxos. Mas calma lá, nada de correr à farmácia e pedir ácidos graxos achando que esses compostos vão deixar a saúde como em seus tempos de criança. Os benefícios dependem não só do tipo como também da dosagem. “Mesmo ácidos graxos insaturados como o EPA e o DHA em doses altas, como nas dietas parenterais [aplicadas na corrente sanguínea de pessoas que não podem se alimentar por via oral], podem ser tóxicos para as células do sangue”, diz Maria Fernanda Cury Boaventura, da Unicsul. Em testes com voluntários saudáveis e com pessoas hospitalizadas, Maria Fernanda e outros pesquisadores da USP verificaram que o excesso de ácidos graxos no sangue – como ocorre em pessoas saudáveis nos momentos de jejum e com pessoas diabéticas ou obesas, não só em quem está hospitalizado e acabou de receber dieta parenteral – pode causar uma redução, ainda que modesta, no número de linfócitos, um tipo de célula de defesa.
O que já se fez pode servir de motivação para os profissionais da saúde buscarem tratamentos mais adequados para as pessoas sob seus cuidados. “Alguns hospitais já usam dietas à base de óleo de peixe, mas ainda não é o ideal”, diz Maria Fernanda. “Temos de especificar as dosagens e as composições das dietas de acordo com os pacientes. A dieta parenteral à base de óleo de soja, a mais adotada mundialmente, pode contribuir para abater as defesas do organismo – em uma palavra, pode ser imunossupressora –, o que pode ser ruim para a maioria das pessoas hospitalizadas, mas poderia ser indicada para pacientes transplantados, por exemplo.” Curi acrescenta: “Não sabemos ainda dizer quanto cada dieta deve conter de cada tipo de ácido graxo, mas já sabemos quais tipos não poderiam faltar e os que não poderiam aparecer em excesso. O importante são as combinações”. Outra razão para valorizar as combinações é que os compostos puros ainda são muito caros.
Fonte: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=4180&bd=1&pg=1&lg=
Uma parte desse novo conhecimento vem de uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) coordenada pelo médico endocrinologista Mário Saad. Há anos ele e sua equipe estudam as causas dos desequilíbrios orgânicos que levam à obesidade e ao diabetes. No ano passado, Lício Velloso identificou uma causa específica dessas doenças: o consumo excessivo de gorduras saturadas de cadeia longa pode gerar uma inflamação nos neurônios de uma região na base do cérebro, o hipotálamo, que controlam a fome (ver Pesquisa Fapesp nº 156, de fevereiro de 2009). A inflamação impede o correto funcionamento do hormônio insulina, que facilita a captação de glicose nas células. Os neurônios do hipotálamo perdem a capacidade de se ligar à insulina – fenômeno conhecido como resistência à insulina, comum em pessoas obesas ou diabéticas – e a fome predomina sobre a saciedade. Agora Eduardo Ropelle concluiu que praticar exercícios físicos, além de queimar calorias, como já se sabia, ajuda a reduzir a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a restabelecer a saciedade.
Ropelle transformou camundongos normais em obesos, dando-lhes uma dieta rica em gorduras saturadas. Em seguida pôs uma parte dos animais para nadar e correr em esteira, enquanto outros permaneciam em repouso. Os camundongos que se exercitavam produziram intensamente proteínas anti- -inflamatórias conhecidas como interleucinas (neste caso, de dois tipos, a IL-6 e a IL-10), como detalhado em um artigo publicado este mês na revista PLos Biology. Essas interleucinas reduziram a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a insulina voltou a funcionar normalmente. Os animais desse grupo começaram a comer menos e perderam peso.
“A atividade física restabeleceu o equilíbrio molecular e celular no hipotálamo”, concluiu Ropelle. Para conferir se essas duas proteínas tinham mesmo esse efeito, ele aplicou IL-6 e IL-10 no cérebro dos animais obesos que não fizeram exercícios – e também emagreceram. Camundongos geneticamente modificados, incapazes de produzir esses dois tipos de interleucinas, continuaram engordando, mesmo que nadassem e corressem. Esse trabalho levanta a possibilidade de controlar a obesidade e o diabetes intervindo em processos inflamatórios no sistema nervoso central, não necessariamente por meio das interleucinas, que podem reduzir as defesas do organismo contra microrganismos causadores de doenças.
Em busca das origens mais profundas da resistência à insulina, Velloso e Saad concluíram que as gorduras saturadas se ligam a proteínas da membrana celular conhecidas como TLR-4. Os receptores acionam enzimas que bloqueiam a ação da insulina, impedindo o aproveitamento da glicose (ver Pesquisa FAPESP nº140, de outubro de 2007). “Quando ativado”, diz Velloso, “o receptor celular TLR-4 aciona o processo inflamatório e o estresse celular que podem causar a morte de neurônios. A consequência pode ser um desequilíbrio no número de neurônios, se morrerem mais neurônios que acionam a vontade de comer do que neurônios que tiram a fome”. Por sorte, ele acrescenta, os ácidos graxos insaturados ômega-3 podem ter o efeito oposto dos saturados, bloqueando em vez de estimular a inflamação. Essa classificação dos ácidos graxos decorre do número de ligações químicas duplas entre seus átomos de carbono: os ácidos saturados não têm ligações duplas, enquanto os insaturados têm pelo menos uma. O tipo de ligação química determina as estruturas espaciais (os saturados são alongados e os insaturados curvos) e suas propriedades, como a capacidade de interagir com diferentes moléculas do organismo.
Velloso acredita que a propriedade anti-inflamatória dos ácidos graxos insaturados ômega-3 poderia ser mais aproveitada, por exemplo, para motivar mudanças na composição dos alimentos, com o reforço de gorduras benéficas, que nos últimos anos já ajudou a reduzir o risco de infarto e outros problemas cardíacos e poderia beneficiar também quem não lida bem com a glicose. No Brasil, 6 milhões de pessoas já sabem que são diabéticas e outras 6 milhões podem ainda não saber, por não terem sido diagnosticadas. Já o sobrepeso e a obesidade, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Saúde, divulgados em junho, atingem quase metade da população, tendo avançado de 43% para 47% de 2006 a 2009.
“Um ácido graxo saturado, o palmítico, aciona o receptor celular TLR-4 e os processos inflamatórios que levam à resistência à insulina, enquanto outro, um insaturado, o palmitoleico, tem efeito inverso e diminui a resistência à insulina”, observa Rui Curi, coordenador de um grupo de pesquisa nessa área no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (SP). Jarlei Fiamoncini, de sua equipe, conduziu um experimento que mostrou esse contraste claramente. Camundongos que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados da família ômega-3, o eicosapentaenoico (EPA) e o docosahexaenoico (DHA), encontrados em peixes de clima frio como salmão e bacalhau, apresentaram maior sensibilidade à insulina, normalizando a concentração de glicose no sangue. O excesso de glicose no sangue pode danificar nervos e vasos sanguíneos.
Nesse experimento, além de normalizar os níveis de glicose, a dieta à base de óleo de peixe diminuiu a produção de enzimas que formam gordura a partir de carboidratos (açúcares). Em consequência, os animais desse grupo ganharam menos peso que os do outro, alimentados com banha de porco, rica em ácidos graxos saturados. “A gordura saturada como a de banha de porco atrapalha a captação de glicose e pode induzir a resistência à insulina”, diz ele. Os animais do segundo grupo tiveram mais fome, comeram mais e engordaram muito.
Gorduras saturadas ou insaturadas podem ter efeitos opostos também sobre as células musculares. O excesso de dois tipos de ácido graxo saturado, o palmítico e o esteárico, prejudicaram o funcionamento de células musculares cultivadas em laboratório e dificultaram a ação da insulina, enquanto os ácidos oleico, linoleico, EPA e DHA, todos insaturados, não alteraram o funcionamento das células e deixaram a insulina agir normalmente, de acordo com os estudos de Sandro Massao Hirabara, professor da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 previnem a resistência à insulina induzida pelos saturados”, comenta, com base em estudos em andamento.
“Não é à toa que os japoneses e os esquimós, que consomem muito peixe rico em ácidos graxos insaturados ômega-3, comparativamente com outras populações, apresentam menos problemas cardíacos, diabetes e obesidade”, diz Curi. Pode ser bom, portanto, substituir alimentos ricos em ácidos graxos saturados (óleo de soja, manteiga, gordura animal) por insaturados (óleo de oliva, de linhaça ou de girassol). Quem já cumpriu esse estágio pode seguir adiante e trocar os alimentos ricos em ácidos graxos insaturados ômega-6 pelos ricos em ômega-3. Óleos como o de milho, girassol, açafrão e soja contêm principalmente ácido linoleico, do qual derivam os outros componentes da família do ômega-6, enquanto os de canola, linhaça, noz e plantas com folhas verde-escuras em geral são ricos em alfa-linolênico, o principal componente da família ômega-3. Nem todos os ômegas, mesmo sendo insaturados, têm o mesmo efeito sobre o organismo. Como o deus romano Jano, os ácidos graxos, mesmo os do mesmo tipo, têm duas faces, de efeitos opostos. “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 reduzem a inflamação que pode levar à resistência à insulina, enquanto os insaturados ômega-6 podem agir no sentido oposto”, diz Curi, recorrendo ao efeito Jano. Os ácidos graxos podem ajudar a contornar um dos problemas que acompanham o diabetes: a dificuldade de cicatrização, que faz com que mesmo pequenos ferimentos se tornem crônicos, concluiu Elaine Hatanaka, da Unicsul. Sua equipe, com colegas da USP, examinou a ação de três ácidos graxos – ácidos oleico, linoleico e linolênico – sobre ferimentos induzidos em ratos. Os três compostos aceleraram a cicatrização. Como efeito inicial, estimularam a migração de um tipo de células do sangue, os neutrófilos, para o ferimento. Por sua vez, os neutrófilos produziram mais proteínas chamadas citocinas, que, a seu modo, facilitando a comunicação entre as células, contribuíram para o ferimento fechar, como descrito em um artigo publicado na revista Cell Biochemistry and Function. O efeito desses ácidos graxos – outro sinal do efeito Jano? – não é uniforme. “Dependendo do tipo de célula, a ação dos ácidos graxos pode ser diferente”, diz Elaine. Além disso, em um segundo momento, ao longo do processo de cicatrização, os mesmos ácidos graxos agiram de modo inverso: fizeram com que os níveis de células e proteínas comunicadoras, momentaneamente elevados, voltassem ao normal. “Os ácidos graxos modularam a resposta inflamatória ao longo do processo de cicatrização, inicialmente ampliando a ação e a quantidade de neutrófilos e de citocinas [proteínas que facilitam a interação celular] e depois as reduzindo para os níveis normais”, comenta Elaine. Os estudos nesse campo explicam o efeito cicatrizante de óleo de plantas como a copaíba, com alto teor de ácidos oleico e linoleico, e o antigo hábito da medicina tradicional chinesa de tratar ferimentos com extrato de glândulas de grilos, ricas, agora se sabe, em ácido linoleico.
Um estudo feito em camundongos na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Curitiba reforçou a perspectiva de usar ácidos graxos – principalmente os insaturados – como um reforço contra o câncer. Luiz Claudio Fernandes e sua equipe verificaram que um tipo de tumor bastante agressivo, chamado tumor de Walker, cresceu bem menos nos animais que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados EPA e DHA do que nos animais que não ganharam nenhuma dose extra de lipídios. Segundo ele, nos animais do primeiro grupo a produção de um composto derivado dos ácidos graxos, a prostaglandina-3, que freia a multiplicação celular, intensificou-se, e o tumor cresceu menos. No outro grupo, outro composto, a prostaglandina-2, que favorece a multiplicação de células normais e tumorais, é que se intensificou. Fernandes notou também, nos camundongos tratados com lipídios ômega-3, uma menor caquexia, um dos efeitos do avanço do câncer, caracterizado pela perda de apetite e abatimento geral, em razão do consumo intenso de glicose pelos tumores.
Ele acredita que o organismo humano pode apresentar reações ao menos semelhantes. “Quando colocamos células de tumor humano de cólon, pulmão e próstata em um meio de cultura com ômega-3, a taxa de proliferação do tumor cai”, diz. “Os estudos em seres humanos ainda são poucos, mas, pelo que já vimos, os efeitos colaterais indesejados dos ácidos graxos são mínimos e se limitam a flatulência ou a desarranjos intestinais.” Na UFPR, o grupo de Anete Curte Ferraz verificou que o ômega-3 contribuiu para reduzir a depressão em pessoas com Parkinson ou depressão severa, de acordo com um estudo duplo-cego com 31 participantes publicado em 2008 na Journal of Affective Disorders. Em outro estudo, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da USP de Ribeirão Preto e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) concluíram que o ômega-3 pode proteger os neurônios do sistema nervoso central e reduzir a frequência das crises de epilepsia (ver Pesquisa Fapesp nº 169, de março de 2010). Na Finlândia, um teste com 33 mil mulheres indicou outra possível aplicação dos ácidos graxos insaturados ômega-3 e 6, complementados por vitamina D: reduzir os surtos psicóticos em pessoas com esquizofrenia.
Esses estudos reforçam a versatilidade dos ácidos graxos. Mas calma lá, nada de correr à farmácia e pedir ácidos graxos achando que esses compostos vão deixar a saúde como em seus tempos de criança. Os benefícios dependem não só do tipo como também da dosagem. “Mesmo ácidos graxos insaturados como o EPA e o DHA em doses altas, como nas dietas parenterais [aplicadas na corrente sanguínea de pessoas que não podem se alimentar por via oral], podem ser tóxicos para as células do sangue”, diz Maria Fernanda Cury Boaventura, da Unicsul. Em testes com voluntários saudáveis e com pessoas hospitalizadas, Maria Fernanda e outros pesquisadores da USP verificaram que o excesso de ácidos graxos no sangue – como ocorre em pessoas saudáveis nos momentos de jejum e com pessoas diabéticas ou obesas, não só em quem está hospitalizado e acabou de receber dieta parenteral – pode causar uma redução, ainda que modesta, no número de linfócitos, um tipo de célula de defesa.
O que já se fez pode servir de motivação para os profissionais da saúde buscarem tratamentos mais adequados para as pessoas sob seus cuidados. “Alguns hospitais já usam dietas à base de óleo de peixe, mas ainda não é o ideal”, diz Maria Fernanda. “Temos de especificar as dosagens e as composições das dietas de acordo com os pacientes. A dieta parenteral à base de óleo de soja, a mais adotada mundialmente, pode contribuir para abater as defesas do organismo – em uma palavra, pode ser imunossupressora –, o que pode ser ruim para a maioria das pessoas hospitalizadas, mas poderia ser indicada para pacientes transplantados, por exemplo.” Curi acrescenta: “Não sabemos ainda dizer quanto cada dieta deve conter de cada tipo de ácido graxo, mas já sabemos quais tipos não poderiam faltar e os que não poderiam aparecer em excesso. O importante são as combinações”. Outra razão para valorizar as combinações é que os compostos puros ainda são muito caros.
> Artigos científicos
1. HIRABARA, S. et al. Saturated fatty acid-induced insulin resistance is associated with mitochondrial dysfunction in skeletal muscle cells. Journal of Cellular Physiology. v. 222, n. 1, p. 187-94. 2009.
2. PEREIRA, L. M. et al. Effect of oleic and linoleic acids on the inflammatory phase of wound healing in rats. Cell Biochemistry and Function. (no prelo)
3. ROPELLE, E. R. et al. IL-6 and IL-10 anti-inflammatory activity links exercise to hypothalamic insulin and leptin sensitivity through IKK and ER stress Inhibition. PLoS Biology. (no prelo)
1. HIRABARA, S. et al. Saturated fatty acid-induced insulin resistance is associated with mitochondrial dysfunction in skeletal muscle cells. Journal of Cellular Physiology. v. 222, n. 1, p. 187-94. 2009.
2. PEREIRA, L. M. et al. Effect of oleic and linoleic acids on the inflammatory phase of wound healing in rats. Cell Biochemistry and Function. (no prelo)
3. ROPELLE, E. R. et al. IL-6 and IL-10 anti-inflammatory activity links exercise to hypothalamic insulin and leptin sensitivity through IKK and ER stress Inhibition. PLoS Biology. (no prelo)
Fonte: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=4180&bd=1&pg=1&lg=
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