O que o ataque a uma menina de 12 anos, dentro de um ônibus em uma rua movimentada, diz sobre a nossa sociedade.
Por Bolívar Torres
Todos já leram no jornal. Uma menina foi estuprada no ônibus. Foi estuprada ao meio-dia e meia, um dos horários mais movimentados, em uma das ruas mais movimentadas do Rio de Janeiro.
A notícia tem um quê de irreal. Como assim, dentro do ônibus? Como assim, no meio do dia? Ninguém sabe. Ninguém entende. Como é possível?
O que dizem os jornais: um homem entrou dentro do ônibus. Com uma arma, obrigou uma menina de 12 anos a ir para trás do veículo. Pediu para que abaixasse as calças e a estuprou. Antes de saltar do ônibus, ainda teve a chance de passar a mão em outra passageira, que gritou. Depois saiu pela porta normalmente e entrou em outro ônibus. Havia quatro pessoas dentro do ônibus, o motorista, a cobradora e duas passageiras. As passageiras testemunharam e disseram não ter visto nada.
Se tivesse acontecido em alguma obra de ficção, a cena pareceria absolutamente inverossímil. Mas aconteceu na vida real, dia 16 de fevereiro, em pleno Jardim Botânico. O Rio de Janeiro é às vezes tão surreal que supera a ficção mais absurda. Os comentários nas redes sociais e nas matérias dos sites passam muito longe do cerne da questão. Limitam-se a pedir “a volta da ditadura militar”, a pena de morte, o linchamento público. Na verdade, a indignação que tomou conta das pessoas mascara uma perplexidade muito mais complexa, difícil e traumática: como deixamos isso acontecer?
Há, claro, uma série de fatores, digamos, “palpáveis”, que ajudariam a explicar a tragédia. É sabido, por exemplo, que os transportes coletivos do Rio são precários. Os ônibus não passam de latas velhas que insistem em rodar a 200 por hora, quase arremessando para longe seus passageiros. Quando aceleram em uma curva da Nossa Senhora de Copabacana, por exemplo, parecem que vão decolar. Motoristas e cobradores são mal treinados e, na maior parte das vezes, grosseiros e incompetentes. Já presenciei motoristas dirigindo enquanto falavam ao celular durante pelo menos cinco minutos, em um trecho altamente movimentado e perigoso. Já presenciei uma idosa ser atropelada por um ônibus em marcha ré, e outra cair no asfalto e se machucar porque o ônibus não esperou que ela terminasse de descer. Outra, ainda, me disse ter quebrado não-sei-quantas costelas depois de uma curva acelerada (sentada, a idosa foi arremessada como uma peteca em direção ao banco vizinho). Outro dia, um cobrador me ofereceu entrar pela porta de trás, sem passar na roleta, em troca de um trocado para o seu café. E, no ano passado, numa parada da praça Bartolomeu Mitre, lembro que quase estourei minhas costas ajudando sozinho um pobre cadeirante a subir no ônibus, porque o cobrador havia se recusado a ajudá-lo. A justificativa do cobrador: “Não posso”.
Todos sabem que o mundo dos ônibus do Rio de Janeiro é uma terra sem lei: além de oferecer um péssimo serviço a um preço elevado (uma das passagens mais caras do mundo) as empresas não respondem por seus erros, assim como seus funcionários. A cultura do pode-tudo, somada à falta de segurança, fazem do transporte público um espaço para delitos menores, maiores e – em raros mas traumáticos casos – trágicos e absurdos. Alguns recursos simples (como um rádio ao alcance do motorista com ligação direta com a polícia), poderiam amenizar a situação. Mas o que aconteceu na linha 162, quinta dia 16, vai muito além de questões técnicas de segurança. É o retrato instantâneo de uma sociedade que apodreceu.
Uma menina foi estuprada. Dentro de um ônibus em uma rua lotada. Ao meio-dia. O estupro não é um crime silencioso ou sorrateiro. Informou o delegado que o ataque durou 14 minutos. E 14 minutos não são 14 segundos. Mesmo assim, as passageiras insistem não ter visto nada. A cobradora, se viu, não fez nada. O motorista, mesmo com o espelho retrovisor, idem. Não vou acusar ninguém de fazer vista grossa. Mas o fato do estupro de uma menor, em um ambiente fechado, ser tão difícil de notar, revela uma sociedade em que todos olham apenas para seus umbigos e seus smartphones, sem se preocupar com o que acontece ao seu redor. Um deslocamento de ida e volta ao trabalho como robôs anódinos. Não há como não lembrar da clássica crônica de Fernando Sabino: “Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes (…)As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome”.
Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/brasil/no-onibus-um-estupro-virou-invisivel/?ga=dtf
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